Acontece que a internet é uma coisa deveras
interessante. Fonte infindável de informações,
entretenimento, produtos, comunicação, samba,
rock, verdades, mentiras... o diabo. Então
devemos agradecer bastante aos caras que
desenvolveram e desenvolvem esse troço,
sem esquecer que também colaboramos com o show,
quando divulgamos uma coisa ou outra, oferecemos
uma opinião sobre isso ou aquilo. Não nos
subestimemos.
Tá. Mas, se tantas coisas interessantes a
internet oferece, para mim nada há de mais
gratificante do que a possibilidade de conhecer
e contatar pessoas especiais, inteligentes,
cultas, que fazem uma diferença danada no meio
de um mundéu de gente interessante e
desinteressante que cai na rede. Pessoas
com as quais eu jamais trocaria um "oi"
não existisse o e-mail, o blog, o danado
no MSN, o orkut, e essas coisas todas que
colocam pessoas notáveis ao alcance de um
pequeno toque de tecla ou do mouse.
Então. Uma dessas pessoas que eu tenho
satisfação de conhecer na virtualidade real
da net é a tradutora
Jussara Simões.
Dessas pessoas admiráveis, mestres no sentido
verdadeiro da palavra, que sempre acrescentam
alguma coisa com suas opiniões próprias, não
emprestadas, como essa:
"Muita gente me
pergunta por que não tenho os títulos de mestra
e doutora. Confesso que muitas vezes, nos últimos
20 anos, cheguei a pensar nesse assunto, mas é
coisa que dá e passa.
Até comecei uma pós lato sensu na UERJ em 88
pra preparar o estômago, mas ele é fraco e
começou a se revoltar, então abandonei.
Aprecio quem tem estômago forte e não vê nada
demais nesse uróboro em que todos se alimentam
da troca de elogios. E não é assim só no Brasil.
É no mundo inteiro. Todos são devotos de S.
Francisco de Assis: é dando que se recebe.
"Eu elogio a sua tese e você elogia a minha,
não importa se é uma porcaria, o que não
podemos fazer é deixar que o nosso adversário
seja elogiado". É um jogo de interesses que
promove os que têm estômago mais forte, os
que adulam melhor e, por isso, também são
adulados. Quem pretende encontrar a verdade
na academia se decepciona. É claro que existem
Alain Sokal e Jean Bricmont, mas a academia se
empenha em acobertar o escândalo. É muito
pequeno o número de leitores de Sokal e
Bricmont, em comparação à esmagadora
necessidade de ganhar diproma de dotô,
essa necessidade que leva cabeças brilhantes
a se vender por 30 dinheiros e apresentar
teses medíocres.
Quando era adolescente, uma das músicas que
me tocaram fundo foi "That's the way I've
always heard it should be". Sempre que ouvia,
eu chorava e ficava pensando: será que é
sempre assim? Será que tem mesmo de ser
sempre assim? Consegui chegar aos 50 anos
não sendo sempre assim. Tive de abrir mão
de muita coisa de que eu gostava muito,
que até adorava, para não ter de entrar
nesse escambo de elogios, nesse tráfico
de influências da academia brasileira.
Conheço algumas outras pessoas parecidas
comigo, que também sentiram náuseas na
academia. E se afastaram. Mas repito:
admiro quem tem estômago forte e reduz
a própria capacidade a absolutamente
nada em troca de diplomas e cargos.
Principalmente no Brasil é disso que
se vive, não é mesmo? E não vai mudar.
Tenho cá minhas idéias a respeito de muitos
nomes consagrados, mas a academia não deixa
que elas se revelem, pois podem tirar o emprego
de muitos acadêmicos famosos. Fui reprovada
três vezes em história da filosofia VI porque
não aceito a interpretação de Kant que corre
por aí. Quando fiquei de saco cheio da UERJ
e resolvi pegar o diploma pra engavetar fui
aprovada em história da filosofia VI com
nota 10 (e acabei deixando o diploma engavetado
lá na UERJ mesmo porque nunca precisei dele
pra nada). Isso prova que eu sabia, sempre
soube, o que nos obrigam a repetir, mas eu
queria apresentar minhas idéias, o que é
proibido. A professora disse: "Suas idéias
merecem análise, não deixam de ter embasamento
forte, mas não é essa a interpretação consagrada
e eu não quero me comprometer". É assim: se você
não engolir a interpretação "autorizada" da
coisa, vai ficar amargando reprovação atrás de
reprovação porque ninguém tem coragem de
enfrentar os medalhões (por falar nisso, quem
não leu devia ler a teoria do medalhão de
Machado de Assis, pois ele sabe explicar essas
coisas muito melhor que eu). Às vezes me lembro
do método de conversão da cientologia (traduzi
alguns livros dessa religião): o "auditor"
passa o dia inteiro fazendo a mesma pergunta,
até você dar a resposta que ele quer, e não a
que você considera certa. Isso se chama lavagem
cerebral. É assim que fazem na academia e o
Ron Hubbard deve ter aprendido lá. Não só o
Ron Hubbard, mas tem gente na trad-debate
que também aprendeu com ele.
O que me fez lembrar de tudo isso foi este
trecho:
"Perhaps Russell's most significant
contribution to philosophy of language is his
theory of descriptions, as presented in his
seminal essay, On Denoting, first published
in 1905 in the Mind philosophical journal,
which the mathematician and philosopher Frank
P. Ramsey described as "a paradigm of philosophy."
Eu não tenho o direito de afirmar que On
Denoting está superado porque não pertenço
às rodinhas do tráfico de influências,
embora o descritivismo já esteja morto e
enterrado (mas ninguém foi ao enterro). A
turma do tráfico de influências elogia um
texto obsoleto, então eu tenho mais é que
me calar. Se quem também o acha obsoleto
não está na lista dos preferidos da academia,
então também vai ganhar uma mordaça. O negócio
funciona assim: ninguém lê os trabalhos em si,
só os elogios. Quando lê, sempre chega às mesmas
conclusões que aqueles que os elogiam, pois é
um perigo chegar a qualquer outra conclusão.
Depois que o cara morre neguinho diz o que
quer e ainda tem a desfaçatez de desmentir
a autobiografia. Pô, meu! Jorge Amado já
morreu, então acho que vou pegar alguns
livros dele e sair por aí dizendo que fui
eu que escrevi e ele assinou. Assim fica
fácil ser autor de qualquer coisa.
Principalmente quando se tem o tráfico
de influências para dar amparo. É só fazer
"amigos" na academia que tudo fica resolvido.
E "amigos" está entre aspas porque sabemos
muito bem que esses amigos só são amigos
enquanto a gente não banca o preguinho
assanhado do provérbio chinês que aqui se
identifica com "o bom cabrito não berra".
Concordo com o Desidério Murcho quando ele
diz que em Portugal e no Brasil só se formam
historiadores da filosofia, porque ninguém
tem colhões pra sair dessa pasmaceira e ter
idéias próprias. Ninguém tem colhões para
filosofar no Brasil, só para repetir. E quem
tem idéias interessantes não tem estômago pra
agüentar essa palhaçada do "é proibido falar
mal de fulano" ou "tá na moda falar mal do
cicrano". Quem quiser falar por si vai falar
sozinho.
Em 1998 me reaproximei da academia, achando
que talvez tivesse melhorado. Nada disso:
piorô! Continua na base do toma lá dá cá.
Repito: não tenho estômago p/elogiar o que
acho ruim só porque o autor tem prestígio
na academia. E o pior é que o português das
faculdades e mestrados de tradução está muito
mais ridículo do que aquele que criticamos
aqui. É um tal de "o ponto", "ponto-chave",
"questão-chave", "o que é um isso", "um aquilo
é..." e outras coisas ainda mais ridículas que
não dá pra engolir. E a turma sai por aí
repetindo sem questionar. Ninguém se toca.
Não consigo ler esse português capenga, esse
tradutês cheio de decalques, sem criticar.
É duro aceitar que os "professores" de
tradução sejam os que mais cometem esses
erros. É duro aceitar que os alunos, em busca
do saber, se viciem nesse uróboros, em vez de
aprender alguma coisa.
Com isso vou me afastando cada vez mais. Andei
montando um curso de tradução, mas parei. Eu
sozinha não conseguiria combater tantas bocas
entortadas pelo cachimbo gigantesto dessa
academia viciada. Só perderia tempo. Desisti.
Apesar de ter essa predileção por me avacalhar
[com tanta gente pior do que eu por aí pra ele
pegar no pé], bem faz o Tomás ao se manter
distante dessa cambada da academia. Taí um
cara que merece o título de doutor honoris
causa, mas aposto que ele vomitaria em cima
do diploma."
Show de bola. É dela também esse outro petardo:
"...as universidades
públicas também já foram pro saco.
Nunca estudei em universidade particular,
sempre em universidade pública e hoje em
dia tá difícil estudar até nas públicas,
pois apodreceram. Até os prédios apodreceram.
O prédio da UERJ está virando farinha."
A triste realidade nos parece menos triste quando
dita de forma contundente e com estilo.
Kali.
Gostou, assine.
Não falo de mim, mas do mundo, bem mais importante e interessante. Quiçá, mais bonito :Þ