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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004
Se dizem por aí que o ano começa só agora, depois do Carnaval, até que esse conto não fica assim tão deslocado no tempo. Mas eu o escrevi por causa de um comentário deixado aqui por essa menina que eu admiro tanto. O comentário foi esse:
Angel tem que tomar muito cuidado com as coisas que me diz. Eu posso tomar uma simples sugestão sua como uma ordem. O BRINDE Caminhava tranqüilo o arquiteto K., apesar de deserta a rua e avançada a hora. Não faltava muito para a meia-noite. Nem precisou olhar para o relógio. Os fogos já começavam a pipocar. Bem longe dali, é verdade, mas podiam ser ouvidos. À beira-mar, onde o povo todo foi festejar a passagem de ano. “Humf!”, resmungou. Mas estava de bom humor e realmente tranqüilo. Ia para casa, vindo de um bar onde foi “abastecer a máquina de pensar”. Não estava com medo de ser assaltado naquela rua desolada. Já providenciara o que para ele era necessário para não sofrer qualquer violência: dinheiro na carteira e cartões, com as senhas já anotadas num papel. Já tinha na ponta da língua o que dizer a um possível assaltante: “abaixe a arma que a polícia pode desconfiar e aí vai dar merda. Não vou fazer nada, pode ficar tranqüilo.” Dizia isso com um sorriso no canto da boca. “Pelo menos meu dinheiro estará bem aplicado: em distribuição de renda e na proteção de minha preciosa vida. Quer melhor?”, perguntava ele para um interlocutor imaginário. Mal sabia porque estava indo embora a pé. Simplesmente decidira. “Queria sentir o mundo a meus pés, hahaha.” E ria, ria no meio da noite. E danava a pensar. O ritmo do pensamento era bem mais intenso que do seu andar. Ele mesmo achava isso. Mas mesmo assim se replicava: “Como então a gente voa quando começa a pensar? Hahahaha." Estava pensando no Ano Novo.”Que Ano Novo?! Cada segundo é novo!” Os fogos pipocavam cada vez mais intensamente. “Por que Ano Novo? Quem disse que um ano vai terminar daqui a pouco para começar outro? Se o ano é o tempo que dura o movimento da Terra em torno do Sol, e esse movimento é contínuo, como se determina o início e o fim de um ciclo? Apenas por convenção. Idiotas! Tudo convenção. Lembrou-se agora do horário de verão. “Olha aí! Além de tudo, estão comemorando uma hora mais cedo o fim de um ano! Ah, tudo bem, tudo bem. O povo sempre conta mesmo com o ovo no cu da galinha antes de ela botar! Hahahaha.” “Isso sem falar que o movimento completo em torno do Sol não coincide exatamente com número de dias redondos. Tem umas seis horas a mais. Deveriam era comemorar o fim do ano pela manhã, e não à meia-noite. Idiotas! Fodam-se! Se ninguém se preocupa com isso, eu é que vou me preocupar? Se o relógio de Deus é maluco, o do homem é um Rolex! Hahahahaha.” “Muito bom aquele uísque, muito bom!” “Agora vou caminhar descalço. Vou sentir mais ainda o mundo a meus pés hahaha.” Parou e desatou os cadarços dos tênis. “Até que é bom trabalhar de tênis. Vou fazer isso mais vezes.” Mas não os tirou de imediato. “Vou fazer isso com estilo.” Ao retomar a caminhada, lançou um após outro os tênis pela rua em chutes pelo ar. Gooooolaço!”, dizia, acompanhando a trajetória do tênis do pé direito pelo céu da noite. “De canhota... No ângulo!!!” gritava ao fazer o mesmo com o pé esquerdo, imitando os radialistas esportivos e lembrando-se das jogadas que fazia num campo de pelada, num terreno estéril perto dali, onde cresceu um galpão. “Não estou jogando nada fora! Algum moleque vai pegar e ficar todo feliz! Se o governo quisesse mesmo pegar os pivetes pelo pé deveria fazer como eu: distribuir tênis. Hahaha.” E ria, ria de dar dó. Andou ainda um bocado pensando por dentro e rindo por fora o tempo todo. Até que parou. Estava tão compenetrado em suas divagações que só agora se dera conta de que havia ultrapassado o local onde morava. Passou em frente de sua própria casa e nem percebeu. “Estou arruinado! Este sou eu: um arquiteto que construiu sua casa no lugar errado!” Enquanto o pipocar dos fogos atingia o ápice, uma sonora gargalhada estourou na noite. Era o seu brinde ao Ano Novo.
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Não falo de mim,
nos cartões abaixo para ver os diálogos. imagens: Kim Anderson textos: kali |